Por Dra. Maira Caleffi
A pandemia do novo coronavírus impôs mudanças importantes nos sistemas de saúde de todo o mundo – e por um tempo prolongado. Até agora, o recorde de produção de uma nova vacina é de quatro anos. Para o coronavírus, alguns atalhos estão sendo tomados a fim de acelerar o processo. Atualmente, temos seis vacinas em fases finais de testes e uma aprovada para uso limitado.
Mesmo sendo promissoras, há diversas barreiras clínicas, políticas e logísticas para que elas cheguem à população. As previsões mais confiáveis falam que teremos imunizantes na metade de 2021. Até lá, quais dificuldades enfrentaremos no acesso ao tratamento de câncer dos milhões de brasileiros já diagnosticados? E como ficarão aqueles que percebem alterações no corpo e buscam atendimento na rede pública, mas não conseguem agendar consulta médica ou exames de diagnóstico?
Nós, especialistas, tememos uma epidemia de câncer em estágio avançado depois da pandemia, já que, por causa do medo de contrair a Covid-19, muitos pacientes preferem esperar para marcar uma consulta – ou encontram barreiras de acesso à rede pública.
Precisamos continuar ecoando fortemente a mensagem de que o câncer não faz quarentena e mata. Resultados de estudos com pacientes com câncer de mama na França e em Nova York mostraram que a maioria daqueles infectados pelo coronavírus se recuperou da Covid-19. Na verdade, condições médicas concomitantes parecem aumentar os riscos de complicações ainda mais do que os tratamentos para o tumor.
Outro estudo publicado recentemente na revista Lancet indicou 13% de fatalidades em um grupo de pessoas com câncer e Covid-19 – o dobro das que só tinham coronavírus. Contudo, o perigo aumentado estava ligado aos mesmos fatores de risco de pessoas sem câncer, como ser homem, ter idade avançada ou apresentar comorbidades prévias.
É preciso ressaltar que alguns fatores de risco para desenvolver a forma grave de Covid-19 foram apontados especificamente para o câncer, como ter a doença ativa ou em fase crescente, além da baixa capacidade de a pessoa cuidar de si e/ou praticar atividades físicas.
De olho nisso, devemos educar os pacientes sobre como manter a rotina de cuidados e de luta pelos direitos, seja para diagnóstico precoce ou durante as fases de tratamento. Pequenas alterações no estilo de vida (feitas de dentro de casa mesmo) já ajudam demais, como não fumar, reduzir o consumo de bebidas alcoólicas, fazer exercícios, dar preferência a alimentos naturais, manter uma dieta equilibrada e se vacinar.
Flagrar a doença rápido é essencial
No câncer de mama, por exemplo, o autoconhecimento é uma ferramenta fundamental no diagnóstico precoce, pois, ao perceber qualquer alteração na mama, a paciente deve procurar ajuda médica. Enquanto a vacina para o coronavírus não chega, há alternativas seguras para consultas preliminares com ginecologistas ou mastologistas. Dá para apostar na telemedicina ou em consultas presenciais em lugares que cumpram todas as normas de segurança.
De acordo com um estudo publicado em junho de 2020 pelo Grupo Brasileiro de Estudos do Câncer de Mama (GBECAM), e do qual sou coautora, pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) são diagnosticados com doença sintomática, em estágios mais avançados e com subtipos mais agressivos em comparação a pacientes da rede privada. Quando os casos chegam em estágios avançados, os riscos são maiores e os custos, mais altos.
Acontece que a Covid-19 aumenta a distância entre os pacientes oncológicos do sistema público e os da rede privada em relação à chance de sobrevivência. Falta, portanto, uma mobilização nacional para impedir que as mortes por câncer aumentem nos próximos meses e anos. Se essa situação não for combatida, tanto os governos estaduais como o federal serão responsabilizados por essas vítimas.
Pacientes oncológicos do SUS, que já tinham pouco respaldo do Ministério da Saúde mesmo antes da pandemia, precisam saber da existência de leis em seu favor para exigirem direitos já assegurados. A Lei dos 30 Dias, para citar um caso, estabelece que exames para a confirmação do diagnóstico de câncer devem ser realizados em até 30 dias.
Com o diagnóstico positivo em mãos, o tratamento deve ser iniciado em, no máximo, 60 dias – algo previsto pela Lei dos 60 Dias. Isso contempla desde cirurgias até o início de sessões de quimioterapia ou radioterapia.
Caso o prazo para qualquer uma das leis não seja respeitado, procure a Secretaria de Saúde de sua cidade e denuncie à ouvidoria do SUS pelo telefone 136. Em último caso, recorra ao judiciário.
O tratamento não pode ficar para depois
Não há como negar o impacto da pandemia em pacientes de câncer, mas a interrupção do tratamento não pode acontecer. Em levantamento da Femama, a principal reclamação de pacientes de suas ONGs associadas foi o cancelamento de consultas (32,3%) e de cirurgias (22,6%), seguida pela falta de agenda para exames diagnósticos (16,1%).
Embora cirurgias (32,3%), quimioterapia e radioterapia (ambas com 3,2%) representem parte dos procedimentos que deixaram de ser disponibilizados, muitos pacientes não tiveram seu tratamento interrompido (41,9%). Isso mostra que, apesar das dificuldades, há um esforço para que eles continuem, especialmente no SUS, que atende 77,4% dos pacientes com câncer de mama.
Mas todos precisam ter acesso aos cuidados. Por isso, se precisar ir pessoalmente até uma clínica ou hospital para iniciar ou continuar o tratamento, procure seguir à risca todas as orientações básicas, como usar máscaras, manter o distanciamento, lavar bem as mãos com água e sabão e/ou usar álcool em gel.
Algumas unidades de saúde, como o Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre (RS), já estão preparadas para essa nova realidade, disponibilizando áreas totalmente adaptadas para serem livres de contaminação.
As ações preventivas podem variar de um centro de tratamento para o outro, incluindo medição de temperatura antes de consultas ou necessidade de realizar o teste de coronavírus para marcar cirurgia ou quimioterapia. É possível também encontrar locais com encurtamento do tempo de internação e limitação de visitantes.
De maneira geral, o consenso médico é de que os benefícios de procurar atendimento superam os riscos. Se você tem câncer, deve se tratar. Do contrário, ele poderá progredir. Na dúvida, consulte seu médico de confiança ou procure uma das ONGs associadas à Femama para diversos tipos de apoio.
*Maira Caleffi é mastologista, presidente voluntária da Femama (Federação Brasileira de Instituições Filantrópicas de Apoio à Saúde da Mama) e do e Instituto da Mama do RS, chefe do serviço de mastologia do Hospital Moinhos de Vento (Porto Alegre/RS) e líder do Comitê Executivo do City Cancer Challenge Porto Alegre.